Debati
internamente durante umas valentes horas, como haveria de começar esta “carta”.
Bem, na verdade, não foi só esse o assunto que alimentou os meus demónios
durante esse tempo; sanguessugas torpes que, sobre um corpo ainda jovem, insistem na
recordação ingrata que mais energia consome ao espírito: o teu inocente
sorriso.
“Carta”
que coloco entre aspas, sinal em que deposito duas interpretações: uma, óbvia,
a de este texto não se prender aos padrões vulgares a que nos habituámos a
reconhecer num documento desse estilo; outra, originada, provavelmente, nos meandros
do meu cérebro, de conotar esta produção de uma clausura conventual -
abnegando-se o destinatário, por desconhecimento de existência, de que o seu
conteúdo lhe roce a vista - expressada pela utilização do dito símbolo gráfico.
Desta
forma, amarro, de novo, informação que até deveria ser tua.
O
mesmo já aconteceu com as palavras que, suspeito, quisesses que não tivessem
encontrado o muro dos meus lábios que, por privilégio de poder ser eu, acabei
por erguer.
Suspeito?
Sim, permito que a incerteza, desta vez, me vença, me leve a melhor. Não é da
minha índole deixar que aconteça, mas refugio-me nela porque, se as suspeitas
de correspondência não se confirmassem evito enfrentar um juízo errado da minha
parte – forte arrebatador do ego -; se fossem ao encontro da verdade talvez não
suportasse o peso da obstinada indolência que tive para contigo.
Deixo,
assim, que o mistério envolva, com a sua névoa densa, a certeza do julgamento;
que a ilusão do que poderíamos ter tido, ao ser várias vezes revisitada pela
memória, se converta na magia de uma realidade alternativa que nos custaria
rejeitar.
Talvez
não devesse escrever no plural, explorando uma ideia de mutualidade que, mesmo
desconfiando, honestamente, desconheço. Afinal de contas, se são praticamente inalcançáveis
as intenções de uma mulher, as tuas, sei que as encerras cuidadosamente,
precavendo qualquer sensação inesperada. Mas sabes, acontece que quanto mais
tentas esconder um determinado pensamento, quanto mais o aplastas, o espremes
contra uma das paredes internas da caixa craniana, tentando retirar-lhe
qualquer réstia de iluminação que o possa colocar sob julgamento, mais ele
procura uma fresta por onde possa escapar desse sufoco sobre-humano a que o
submetes e tornar-se tangível.
Por
entre as brechas que as mechas desses teus longos e inquietantes cabelos
trigueiros deixam, viseira da gálea que armas na batalha, ainda sem fim, que os
teus olhos cor de mel travavam com a minha negra mirada perscrutadora, deixas
coar indícios que justificam as minhas suspeitas: convites, irrecusáveis
assumo, que os teus lábios vermelhos faziam, para dançarmos baixo a luz rápida
e trémula da noite, envoltos no ruído, noutra situação incómodo, naquela,
hipnotizante e, consequentemente, amestrador dos instintos inibidos e das vontades
imediatas; passeios em horas mortas, saídos de onde a esperança se dá e se tira
num mesmo instante, pelos jardins da cidade dourada, discretos mirones que
acompanharam, em sintonia, o despertar da nossa primavera deixando para trás o
espírito pálido e invernal, e florindo de cor e belos aromas os arbustos nus,
vestígios do passado frio árido e insípido; conversas atraentes sobre uma mesa metálica, explorando com as
mãos e em simultâneo a árvore da vida, lendo, fingindo, uns livros que, estou
convencido, não explicavam a matéria do nosso estudo.
Avançados
vamos nesta “carta” e só agora revelo porque te a escrevo: procuro confirmar as
tuas conjeturas.
Não
porque algum esgar do meu rosto não me tenha já denunciado e tu, aguda e
perspicaz como te conheço, desenhada também a traços de subtileza, não tenhas
captado essa evidência, ocultando a descoberta mordendo o lábio inferior, mas
porque avocar à consciência as impressões desta história liberta-me,
parcialmente, da carga de ter falado contigo sempre em silêncio.
Inútil
intenção? Sem sentido, não? Ações como tal não se cobrem de razões para terem o
seu lugar, o seu espaço. Respondem ao ímpeto das emoções, vigoram sobre o filtro
do discernimento, superiorizam-se ao uso da razão pura.
As
minhas mãos concorrem à cabeça, que as entremeia, o olhar perde-se na
tortuosidade hesitante das palavras gravadas, aspirando a segurança reta das
linhas vazias, a respiração torna-se oca e superficial e exibe-se a película
novamente.
Sensações
destas, temos que dar-lhes licença para percorrer as artérias do nosso organismo,
chegar livremente aos órgãos-alvo e operar por nós numa dimensão diferente à
costumada, não reproduzível pela vontade, mas pela invocação.
Não
é assim que adiamos a loucura?; deixando-a insinuar-se ao exterior em doses
frequentes mas pequenas?
Maldita
cobardia a nossa!
Esperamos
o movimento do outro para somente reagirmos, incapazes da ação incisiva
exigida, esticamos a corda até ao ponto em que nos sentimos confortáveis,
amparados; não arriscar nada, não perder nem ganhar.
O
que podemos perder, na verdade?
À
medida que vou terminando, apercebo-me do muito que fica por escrever. Matéria
para nova “carta”? Veremos; só se renunciarmos à la douleur exquise artificial, produto de uma criação nossa.
Despeço-me,
esperando que o que escrevo não passe de uma memória do engano…ou de um sonho e
augurando que a conclusão desta história, daquela batalha, ficará adiada por
mais um ano.