Aos que desconhecem o labor a que, por
vocação, nos debruçamos em ameno, contudo, árduo estudo, agora o desvelamos
laconicamente: somos estudantes de Medicina.
Por vocação dizemos, já que por talento ou
imposição genética alguma área humanística teria as portas abertas à espera da
nossa chegada. Todavia, aplacamos a sequiosa demanda do génio e da
hereditariedade com as digressões prolixas que partilhamos.
Ser estudante de Medicina acarreta
responsabilidades para as quais, ainda, não estamos mentalmente preparados para
lidar. Há sempre a amiga que questiona sobre o medicamento que deve tomar para
combater a molesta dor de cabeça de que padece, ou sobre qual a forma mais
eficaz de fazer frente à constipação que os meses frios sempre reservam ou
ainda que enfermidade inoportuna ataca sempre na primavera deixando os formosos
narizes a pingar quando o que se quer é aproveitar o ar, um tanto-quanto menos cristalino,
que esta estação oferece.
Não nos tomem como bobos; sabemos responder a
estas questões e ainda às que forem necessárias.
Bem, escrevemos na segunda pessoa do plural
mas referimo-nos a quem emprega a sua dedicação ao conhecimento da arte e não
aos companheiros, cujo máximo esforço que contêm no âmago é colocado no
levantamento do caneco ou na discussão sobre a pose mais atrevida para a
fotografia “eu inocente” do ‘Instagram’. Há destes carácteres que se
entretêm com o fulgor do encantamento frívolo, com as atrações que a brevidade
exibe para nos prender aos seus instantes sem precatarem que do trabalho de
hoje dependerão vidas amanhã.
Mas quem somos nós para estaquear a divisa
que cada um procura que reja a sua vida.
Não obstante o ensejo que originou a
verbosidade que discorremos nos últimos parágrafos, não tocámos ainda no
verdadeiro tema que nos moveu, esta noite, a escrever.
Quando somos estudantes de Medicina e estamos
numa consulta lado a lado com o médico, assim que o paciente e acompanhantes
entram naquela pequena sala, decorada de receio, inquietação e dúvida, seria de
esperar que o primeiro olhar a encontrar o seu fosse o do profissional que se
lá se encontra. Todavia, quando nos submergimos na relação médico-paciente,
acautelamos o juízo em matérias como esta. Na verdade, é mais frequente que o
sorriso reconfortante venha dos olhos inexperientes mas meigos do estudante.
Obviamente que o que descrevemos não deve ser
interpretado de forma alguma como falta de profissionalismo por parte do
médico, mas admitimos que uns quantos não vêem para lá do órgão debilitado.
Rudeza do coração ou proteção do mesmo?; não nos aventuramos a estabelecer a
resposta que também trespassaria o nosso.
Somos apenas aprendizes; reconhecemos que
muito caminho há para percorrer mas, já num período tão precoce das nossas
carreiras que devemos sentir quando um neto nos vem agradecer o termos ajudado
o seu avô a recuperar a saúde perdida? Que devemos sentir quando o marido nos
vem apertar a mão, sem conseguir esconder a alegria, quando, finalmente, a sua
mulher pode, após uma estadia hospitalar prolongada, regressar à sua amada e
doce casa? Que devemos sentir, quando um filho, de olhos inchados e vermelhos, mirada
vazia e perdida, nos agradece os esforços que fizemos, vãos é certo, na
tentativa de salvar a sua mãe?
E somos apenas estudantes de Medicina, mas
que havemos de sentir?
Quanto à resposta…honestamente, não sabemos o
que havemos de sentir. Mas sabemos que, ao chegar a casa, queremos contar que
alguém nos agradeceu só por estarmos presentes; por termos devolvido, num
sorriso, a confiança que um mau momento retira; por termos eliminado a
corrosiva dúvida que a dor suscita; por termos aliviado o desamparo que a morte
carrega. Simplesmente, por estarmos de corpo e espírito ao lado de quem
necessitava.
Sabemos que quando a noite chegar é aquele
sentimento de realização que nos vai baloiçar até nos entregar a um sono
pacífico e sabemos que é a expetativa de podermos rasgar nas trevas uma nesga
de luz que nos vai despertar para um novo dia.
Ser estudante de medicina é mais do que saber
anatomia, mecanismos fisiológicos e patológicos, diagnosticar doenças e como
enfrentá-las.
Ser estudante de medicina é…