Respiro calmamente o ar que, por ora, na sala, se conserva
leve; debruço-me no parapeito da moldura gigante onde jaz a tela de uma Lisboa
noturna viva de movimento e luzes de “para-arranca”; entremeio a mandíbula
entre a indiferença das palmas das minhas mãos e contemplo o céu nu de astros.
Sei que lá no alto se encontram, mas desta janela metade do firmamento é
ocupado por edifícios monstruosos e o restante é tomado pela lugubridade
violeta de uma cidade, avançada na noite, sem estrelas a velar por ela.
Pff, contemplo! Como se ainda o soubesse fazer. Para ser
honesto, apenas olho. Que me interessa a mim se o refulgir estelar foi
erradicado quando a ambição do Homem destronou o sonho que o conduzia?
Sorrio cordialmente à efémera passagem de uma estrela
cadente. Como um cumprimento de circunstância, um “bom dia” frouxo que
emprestamos ao encontro de um conhecido pelas ruas duma cidade, mas com o qual
não queremos perder muito do que até poderia ser valioso tempo. Prontamente
interrompo aquele olhar, cheio de um vazio de vida, distraído por uma lâmpada a
acender-se no sexto piso do prédio defronte do meu.
Uma mulher vistosa, de olhar profundo e gesto carregado
encerra a porta de madeira detrás de si. Depõe o leve casaco que lhe cobria bem
mais denso vestido no bengaleiro disposto a um canto da entrada e caminha, em
passos pesados, pelas diferentes divisões da casa.
Procurará descobrir alguém nas sombras erguidas pelos móveis
do apartamento ou esperará encontrar nelas exatamente ausência? Ausência que a
luz do sol noturno faria ressaltar no tenebroso nada da solidão.
Pff, que importa! Porque me importa? Porque me ocupo em
indagar os pensamentos mais recônditos da sua individualidade, os seus
propósitos e razões últimas? Os problemas são seus! Será ela quem os terá que
suportar, dormir com eles e acordar de madrugada, desesperada, suada e confusa,
entregue ao acaso do infortúnio quando sem solução, rumo e alento se vir.
Devo-mo cingir apenas ao que sou capaz de ver, ao presente,
ao sintoma principal da película que se vai desenrolando aqui tão perto. Não
devo formular racionalizações que considerem o seu passado, hipóteses que
antevejam o futuro ou buscar causas etiológicas que me façam compreender o seu
comportamento, o seu integral humano; devo praticar um carpe diem misantropo.
Por fim, a mulher alta e de vestido escuro e denso para na
soleira da porta que lhe falta trespassar. Num segundo encerra os olhos, espira
lentamente e pende a cabeça em direção ao chão; no seguinte, recompõe-se e num passo
de indecisa segurança ultrapassa o limiar daquela habitação.
No seu interior vejo, pelo vidro, um homem. Senhor de
carrilho magro e camisola roxa, mostrando já a inexorabilidade do tempo ou o
desgaste da arte – arte não; ofício talvez não preencha as ícaras medidas dos
ilustres senhores de cetro de madeira caruncha e coroa cravada de vulgaridade
pelo que temos que contentar-nos apenas com título de profissão – que permitiu
aos seus desassossegos perderem-lhe o olhar no firmamento edificado.
Alheado, não escuta o pesado passo da mulher que se aproxima
dele e que, com o delicado indicador, levemente percute-lhe o ombro descaído,
falando à sua atenção.
Em sobressalto, como se acordasse de um pesadelo, virei-me.
O ar tonara-se carregado sem me haver apercebido disso. A
inspiração perturbada dos nossos corpos reboa impaciente pelo espaço e a espiração
fria das almas suspende-se com o primeiro relance do olhar.
O rosto daquela mulher mostra o sulco lavrado pelo choro que
por aqueles bonitos contornos havia passado. Em seu redor, vestígios
eritematosos descansam sobre a margem desse leito de grossas lágrimas.
Vejo-lhe receio e tristeza no azul do olhar, mas decisão na
resolução dos seus lábios.
Junta-se a mim, meiga, em frente ao espelho que, sob as
trevas que o céu conjurou, reflete agora o bruxulear de uma estrela em pacífica
solidão; quebra o ruído mudo que se havia instalado nos dias anteriores e, tranquilizando
as trémulas e já não tão indiferentes mãos minhas, sussurra-me:
“Morreu.”