quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O Que Ainda Não Foi Escrito: Cada Noite É Uma Noite




O Que Ainda Não Foi Escrito: Cada Noite é Uma Noite

É tarde. Muito tarde. Não sei bem quão avançada anda a noite, se como eu na minha, na sua consciência cósmica – a tê-la – a noite, esta noite, também erra ou tem já mapeado o ponto terminal desta sua jornada de poucas, todavia arrastadas, horas. Talvez saiba para onde se dirigir; talvez algum sábio marinheiro antigo, jazente hoje, sob um pesada e pobre tumba de granito num cemitério sem nome e poiso, ou amortalhado pela flora que povoa o profundo dos nossos mares, esquecido - até agora -, tenha ensinado a noite a ler destinos no véu celeste. A mim faltou-me um!
Estou longe; tão longe que na ermida, por mim erguida, da existência própria é o nada quem habita. Eu apenas pernoito cá estas horas que entremeiam o ocaso e a aurora. Estou longe; tão longe que não sei como vim, esta noite, aqui ter.  
Da janela do meu solarengo quarto, a contemplar dois velhinhos falando, em tom castelhano e doce, quase em jeito de maternal lengalenga, saltei para esta estranha dimensão, sem ruído, escura, íntima, dolorosa e abandonada. Sinto que, para chegar aqui, violei alguma lei da física: de repente não estou onde me supunha, o relógio não canta as horas que creio serem, não está comigo quem devia estar, não me sinto como me sentia ao ver aqueles dois loucos velhinhos a dançar pelas ruas bamboleantes, mas com corpos decididos e seguros dos passos que a mente já havia esquecido.  
Trespassei a soleira de uma noite que ainda me não tinha recebido. Esta noite é nova! Nesta obscuridade tenebrosa, desvelam-se-me as minhas reais feições. É o espelho da alma, a minha, e eu mal a reconheço. Vivo num estado de demência perpétua que se alimenta da máscara social que o dia me coloca, da ilusão que o resplendor do sol, em rosto maculado, cria.
Hoje, esta noite, vejo-me com uma claridade renovada!
Há quanto tempo perdi o sorriso meigo e genuíno com que retribuía o olhar de quem ousasse penetrar a barreira do meu?, há quanto tempo a gélida muralha do meu abraço substituiu a amena borralha da minha presença?; há quanto tempo me transformei num eu focado apenas em mim?
Bendita sejas, esta noite! Na inconsciência da tua clausura tornaste-me consciente das amarras que me ferem os punhos e tolhem a naturalidade da ação. Devolveste a verdade a um espírito cego pela deliciosa miragem de um bonito logro. Salvaste-me da sepultura da vida ao permitires que, sobre mim, se abatesse a densa e dolorosa proximidade da morte!
Uma qualquer outra noite ter-me-ia reprimido as habituais cogitações ao luar, ter-me-ia convencido a abandonar a minha existência em pensamento e entrar na existência em sensações, ter-me-ia, apaixonada e nua, seduzido a perder, enquanto fosse noite, a noção de mim, ou simplesmente ter-me-ia permitido descansar a consciência indigna tanto do leito sobre o qual repousa como de por tal ser chamada.
 Mas, tu não! A soturnidade com que me banhaste despertou as remanescências do que, agora sei, que quero ser. Permitiste-me, neste final de tarde, dançar contigo e descobrir que sou capaz de rodopiar no teu negro sorriso. Estranho!
Desta rua, sob o sol poente, um jovem olha-nos, admirado, crédulo que as nossas cabeças já não se regem pelas virtudes da juventude e que é o corpo quem lembra e lidera o movimento seguinte. Como se engana! Mas o truque desta ilusão é só revelado pela experiência; o que àquele ingénuo rosto ainda lhe falta! Noite, é em ti que leio o passo seguinte deste minuete que, em silêncio e segredo seculares, levamos.
Já muitas noites eu vivi, mais que tantas espero que me esperem para serem vividas. Porém, será recompensada a paciência de esperar pelo que sei pode nunca surgir? Por esta noite eu esperei… e esta noite surgiu. Do inesperado, de uma conversa aluada e sem despedida à vista esta noite despontou em mim a alvura que retinha no cofre da alma, arrastando consigo a cerração que o abraçava. Por esta noite, tornarei a esperar!
Sei que com a alvorada deixarás de ser o que és e que, um dia, passarás a ser somente uma lembrança longínqua, um instante projetado da tela do meu passado. Um passado que me deixa viver o presente, e sonhar o futuro!




terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

O Que Ainda Não Foi Escrito: O Revés Da Janela



Respiro calmamente o ar que, por ora, na sala, se conserva leve; debruço-me no parapeito da moldura gigante onde jaz a tela de uma Lisboa noturna viva de movimento e luzes de “para-arranca”; entremeio a mandíbula entre a indiferença das palmas das minhas mãos e contemplo o céu nu de astros. Sei que lá no alto se encontram, mas desta janela metade do firmamento é ocupado por edifícios monstruosos e o restante é tomado pela lugubridade violeta de uma cidade, avançada na noite, sem estrelas a velar por ela.
Pff, contemplo! Como se ainda o soubesse fazer. Para ser honesto, apenas olho. Que me interessa a mim se o refulgir estelar foi erradicado quando a ambição do Homem destronou o sonho que o conduzia?
Sorrio cordialmente à efémera passagem de uma estrela cadente. Como um cumprimento de circunstância, um “bom dia” frouxo que emprestamos ao encontro de um conhecido pelas ruas duma cidade, mas com o qual não queremos perder muito do que até poderia ser valioso tempo. Prontamente interrompo aquele olhar, cheio de um vazio de vida, distraído por uma lâmpada a acender-se no sexto piso do prédio defronte do meu.
Uma mulher vistosa, de olhar profundo e gesto carregado encerra a porta de madeira detrás de si. Depõe o leve casaco que lhe cobria bem mais denso vestido no bengaleiro disposto a um canto da entrada e caminha, em passos pesados, pelas diferentes divisões da casa.
Procurará descobrir alguém nas sombras erguidas pelos móveis do apartamento ou esperará encontrar nelas exatamente ausência? Ausência que a luz do sol noturno faria ressaltar no tenebroso nada da solidão.
Pff, que importa! Porque me importa? Porque me ocupo em indagar os pensamentos mais recônditos da sua individualidade, os seus propósitos e razões últimas? Os problemas são seus! Será ela quem os terá que suportar, dormir com eles e acordar de madrugada, desesperada, suada e confusa, entregue ao acaso do infortúnio quando sem solução, rumo e alento se vir.
Devo-mo cingir apenas ao que sou capaz de ver, ao presente, ao sintoma principal da película que se vai desenrolando aqui tão perto. Não devo formular racionalizações que considerem o seu passado, hipóteses que antevejam o futuro ou buscar causas etiológicas que me façam compreender o seu comportamento, o seu integral humano; devo praticar um carpe diem misantropo.
Por fim, a mulher alta e de vestido escuro e denso para na soleira da porta que lhe falta trespassar. Num segundo encerra os olhos, espira lentamente e pende a cabeça em direção ao chão; no seguinte, recompõe-se e num passo de indecisa segurança ultrapassa o limiar daquela habitação.
No seu interior vejo, pelo vidro, um homem. Senhor de carrilho magro e camisola roxa, mostrando já a inexorabilidade do tempo ou o desgaste da arte – arte não; ofício talvez não preencha as ícaras medidas dos ilustres senhores de cetro de madeira caruncha e coroa cravada de vulgaridade pelo que temos que contentar-nos apenas com título de profissão – que permitiu aos seus desassossegos perderem-lhe o olhar no firmamento edificado.
Alheado, não escuta o pesado passo da mulher que se aproxima dele e que, com o delicado indicador, levemente percute-lhe o ombro descaído, falando à sua atenção.
Em sobressalto, como se acordasse de um pesadelo, virei-me.
O ar tonara-se carregado sem me haver apercebido disso. A inspiração perturbada dos nossos corpos reboa impaciente pelo espaço e a espiração fria das almas suspende-se com o primeiro relance do olhar.
O rosto daquela mulher mostra o sulco lavrado pelo choro que por aqueles bonitos contornos havia passado. Em seu redor, vestígios eritematosos descansam sobre a margem desse leito de grossas lágrimas.
Vejo-lhe receio e tristeza no azul do olhar, mas decisão na resolução dos seus lábios.
Junta-se a mim, meiga, em frente ao espelho que, sob as trevas que o céu conjurou, reflete agora o bruxulear de uma estrela em pacífica solidão; quebra o ruído mudo que se havia instalado nos dias anteriores e, tranquilizando as trémulas e já não tão indiferentes mãos minhas, sussurra-me:

“Morreu.”