O Que Ainda Não Foi Escrito: Cada Noite
é Uma Noite
É tarde. Muito tarde. Não sei bem quão
avançada anda a noite, se como eu na minha, na sua consciência cósmica – a
tê-la – a noite, esta noite, também erra ou tem já mapeado o ponto terminal
desta sua jornada de poucas, todavia arrastadas, horas. Talvez saiba para onde
se dirigir; talvez algum sábio marinheiro antigo, jazente hoje, sob um pesada e
pobre tumba de granito num cemitério sem nome e poiso, ou amortalhado pela
flora que povoa o profundo dos nossos mares, esquecido - até agora -, tenha
ensinado a noite a ler destinos no véu celeste. A mim faltou-me um!
Estou longe; tão longe que na ermida, por
mim erguida, da existência própria é o nada quem habita. Eu apenas pernoito cá
estas horas que entremeiam o ocaso e a aurora. Estou longe; tão longe que não
sei como vim, esta noite, aqui ter.
Da janela do meu solarengo quarto, a
contemplar dois velhinhos falando, em tom castelhano e doce, quase em jeito de maternal
lengalenga, saltei para esta estranha dimensão, sem ruído, escura, íntima,
dolorosa e abandonada. Sinto que, para chegar aqui, violei alguma lei da física: de repente não estou onde me supunha,
o relógio não canta as horas que creio serem, não está comigo quem devia estar,
não me sinto como me sentia ao ver aqueles dois loucos velhinhos a dançar pelas
ruas bamboleantes, mas com corpos decididos e seguros dos passos que a mente já
havia esquecido.
Trespassei a soleira de uma noite que
ainda me não tinha recebido. Esta noite é nova! Nesta obscuridade tenebrosa,
desvelam-se-me as minhas reais feições. É o espelho da alma, a minha, e eu mal a
reconheço. Vivo num estado de demência perpétua que se alimenta da máscara
social que o dia me coloca, da ilusão que o resplendor do sol, em rosto
maculado, cria.
Hoje, esta noite, vejo-me com uma
claridade renovada!
Há quanto tempo perdi o sorriso meigo e
genuíno com que retribuía o olhar de quem ousasse penetrar a barreira do meu?,
há quanto tempo a gélida muralha do meu abraço substituiu a amena borralha da
minha presença?; há quanto tempo me transformei num eu focado apenas em mim?
Bendita sejas, esta noite! Na
inconsciência da tua clausura tornaste-me consciente das amarras que me ferem
os punhos e tolhem a naturalidade da ação. Devolveste a verdade a um espírito cego
pela deliciosa miragem de um bonito logro. Salvaste-me da sepultura da vida ao
permitires que, sobre mim, se abatesse a densa e dolorosa proximidade da morte!
Uma qualquer outra noite ter-me-ia
reprimido as habituais cogitações ao luar, ter-me-ia convencido a abandonar a
minha existência em pensamento e entrar na existência em sensações, ter-me-ia,
apaixonada e nua, seduzido a perder, enquanto fosse noite, a noção de mim, ou
simplesmente ter-me-ia permitido descansar a consciência indigna tanto do leito
sobre o qual repousa como de por tal ser chamada.
Mas, tu não! A soturnidade com que me banhaste
despertou as remanescências do que, agora sei, que quero ser. Permitiste-me, neste
final de tarde, dançar contigo e descobrir que sou capaz de rodopiar no teu
negro sorriso. Estranho!
Desta rua, sob o sol poente, um jovem olha-nos,
admirado, crédulo que as nossas cabeças já não se regem pelas virtudes da
juventude e que é o corpo quem lembra e lidera o movimento seguinte. Como se
engana! Mas o truque desta ilusão é só revelado pela experiência; o que àquele
ingénuo rosto ainda lhe falta! Noite, é em ti que leio o passo seguinte deste
minuete que, em silêncio e segredo seculares, levamos.
Já muitas noites eu vivi, mais que tantas
espero que me esperem para serem vividas. Porém, será recompensada a paciência
de esperar pelo que sei pode nunca surgir? Por esta noite eu esperei… e esta
noite surgiu. Do inesperado, de uma conversa aluada e sem despedida à vista
esta noite despontou em mim a alvura que retinha no cofre da alma, arrastando
consigo a cerração que o abraçava. Por esta noite, tornarei a esperar!
Sei que com a alvorada deixarás de ser o
que és e que, um dia, passarás a ser somente uma lembrança longínqua, um
instante projetado da tela do meu passado. Um passado que me deixa viver o presente,
e sonhar o futuro!
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